POR QUE A DIFERENÇA INCOMODA TANTO?
Marisa Faermann Eizirik[2]
Algumas questões não se dirigem a respostas, impossíveis num
campo tão vasto e complexo, mas permitem exercitar o pensamento e, nesse
exercício, transitar por algumas categorias que, penso, poderiam nos ajudar a
refletirmos sobre a educação especial e seus atravessamentos com o poder.
Como trabalhar com esse sujeito que é diferente, frente à
referência da escola normal, em sua potencialidade?
Como agem, instituição e sociedade, na tentativa de
“integrar” o deficiente? Como ser diferente e estar integrado?
Qual é este “não lugar” do feio, do disforme, do diferente,
que mascara o lugar do lixo, do depósito, onde se procura colocar o que é
preciso ficar escondido, não visto, espelho de mil faces, onde a luz quer
ocultar as sombras?
Qual o lugar do professor? Como lidar com a diferença, posto
que ela está ali e não vai desaparecer?
Por que a diferença incomoda tanto?
Algumas dessas categorias que gostaria de desenvolver são: a
exclusão, a diferença e a formação de subjetividade, atravessadas pelos eixos
do poder e do saber.
A exclusão, para Foucault, é muito mais cultural do que
social; é uma questão de civilização. Tratando primeiro do louco, depois do
prisioneiro – grandes modelos de exclusão –, Foucault mostrou que, na sociedade
ocidental, as exclusões são acumuladas, nunca vêm sozinhas, pois constituem uma
separação original, um princípio estrutural, que impõe limites.
Desenvolvendo um pouco mais essa ideia, encontramos em
Foucault o desejo de descobrir as formas estruturadas da experiência da
segregação, da exclusão social, seus modos de transformação em diferentes
níveis, no mundo da cultura. Este autor estuda a experiência da loucura,
procurando ver se existe uma relação entre essa forma de exclusão e outras
formas que se movimentam num mundo dominado pela ciência e por uma filosofia
racionalista. Considera que a loucura existe apenas dentro de uma sociedade;
“ela não existe fora das formas de sensibilidade que a isolam e das formas de
repulsão que a excluem ou a capturam”[3].
Podemos trazer para realidade dos deficientes as mesmas
exclusões: do trabalho e da produção econômica, da sexualidade e da reprodução,
da linguagem e da palavra e das atividades lúdicas como jogos e festas.
Recolhidos, colocados em “lugar seguro”, protegidos, até que ponto se encaram
os deficientes como alguém que tem um lugar “dentro” das diferentes dimensões
da sociedade, podendo exercer suas potencialidades? Ou, de uma forma natural e
preestabelecida, são vistos como incapazes de trabalhar, de ter sua sexualidade
e dela usufruírem, de assegurar sua palavra, de ter seu espaço para o lúdico?
Não estarão, também eles, e de uma forma mais mascarada, excluídos, separados
da estrutura geral da sociedade?
A exclusão está ligada, por Foucault, ao gesto originário de
separação sobre o qual se instala uma cultura e que se desenvolve através do
tempo, indefinidamente se reproduzindo, por formas as mais diversas do que
apenas as da repetição. A exclusão se faz por meio das instituições, dos
regulamentos, dos saberes, das técnicas e dos dispositivos.
Alertando para a força dos discursos que são controlados, na
sociedade, para conjurar os perigos e também para o papel dos dispositivos,
como máquinas de fazer ver e de fazer falar, Foucault define os procedimentos
de exclusão que, em nossa cultura, atravessam os discursos: o interdito, o
rejeitado, a vontade de verdade, os rituais, a organização do saber em
disciplinas, os discursos autorizados, a educação...
Ao analisar o próprio princípio de separação, Foucault
explica que, em seu movimento perpétuo de se reconduzir a seu próprio limite,
se enraíza a noção do “intolerável”. É esse “intolerável”, que se quer
escondido, separado, oculto, que está na base da separação, desde seu início.
As técnicas e dispositivos pelos quais esses mecanismos se solidificam e se
reconduzem, pela perpétua separação, podem ser vistas em várias das descrições
tão bem feitas por Foucault em Vigiar e punir[4] : as disciplinas, o exame, o
exercício do poder de normalização.
Sabemos que o poder normaliza e confina, ao mesmo tempo em
que constrói e produz efeitos e, também, exclui, porque nele (poder), suas
técnicas, seus mecanismos e seus dispositivos, se reproduz o princípio de
separação que o institui. Esses dois estratos (o que normaliza e o que produz),
um histórico e outro institucional, correm sempre inter-relacionados na análise
foucaultiana. Reduzir as dimensões de um problema a um ou outro aspecto pode
conduzir a simplificações.
O importante, nos ensina Foucault, o necessário, é atingir ao
mesmo tempo a consciência das pessoas e as instituições, simultaneamente, bem
ali onde ambas se suportam, na criação de ideologias e em sua cristalização,
amparadas em fortes instrumentos de poder que, concomitantemente em que criam,
são também mantidos e sustentados pelos mesmos mecanismos.
Partindo da exclusão, é possível ampliar a reflexão para a
análise da “diferença”: quem é esse sujeito “estranho” a quem dirijo meu olhar?
Como é essa escuta do “diferente”? Qual o cuidado que dispenso a esse “outro”?
A diferença aparece como categoria a ser analisada, mas
também como problema a ser enfrentado, na concretude das relações sociais e
institucionais. Entendida, a diferença, ora como alteridade, ora como divisão,
se coloca como aspecto importante a ser refletido especialmente pelo sujeito
que a enfrenta, que está sensibilizado para buscar compreendê-la.
É possível encontrar, na reflexão filosófica, a ideia de que
“na procura de uma ordem para o mundo, o predicado (o que é dito sobre uma
coisa) foi confundido com o atributo (o que uma coisa tem, uma parte do que a
coisa é)”[5]. Para definir algo, buscar saber o que uma coisa é, procuramos
delimitá-la em relação a outras coisas, explicitar as diferenças. Essa reflexão
também vale para as pessoas. A definição é, portanto, a base do recorte da
diferença, que organiza, limita lugares, compõe ordens lógicas, dá
significados.
Essa compreensão permite descobrir o lugar da potencialidade
por detrás do rótulo, do atributo: nem tudo está determinado! Há possibilidades
por detrás dele. Por exemplo, com relação ao rótulo de deficiente, houve uma
mudança: hoje se diz portador de deficiência. Há uma mudança na definição:
predicado e atributo se transformam nessa delimitação da diferença. Outros
sentidos se constroem!
Essa organização lógica e também de significados define,
frequentemente, o lugar do “outro”, seus limites, suas possibilidades.
Gostaria de trabalhar com a ambiguidade que existe nesse
“outro”, que não será, necessariamente, sempre o que está fora, o distante, o
estranho – separado de mim –, mas “o estranho em mim” – o diferente que me
ameaça e com o qual nem sempre quero me defrontar: esse feio, disforme, que eu
procuro não ver na outra face do espelho.
Penso que, para entrar na questão da diferença, categoria
que vem interessando a filósofos desde Aristóteles, passando por Heidegger,
Adorno, Nietzsche, Lyotard, Deleuze, e que faz parte de nosso quotidiano, seria
possível utilizar um quadro, uma metáfora, uma imagem, que tivesse plasticidade
para dizer, de forma mais concreta, o que pretendo comentar.
Escolhi usar um metálogo, definido por Bateson[6] como uma
conversação sobre algo problemático em que os participantes se envolvem na
elaboração do tema. É um diálogo que vai além de si mesmo. Retomei, para tanto,
uma conversa entabulada há alguns anos com uma aluna, também psicóloga e
estudante de mestrado, que, como eu[7], estava interessada na questão da
diferença e por que ela incomoda tanto. Conversávamos assim:
“– Sabias que, quando alguém toca uma tecla de piano, as
outras também soam?
“– Ah, mas então é assim que tu tocas as pessoas, atinges a
elas e tocas em outras coisas que têm vibração.
“– São encontros e desencontros nas diferenças. Coisas
minhas e coisas do outro...
“– Como as diferenças têm a ver? Uma soa dentro da outra?
São como vibrações: só se ouve o que tu tocas! Não são todas as cordas que
vibram, mas todas as que se chamam dó (se esta foi a nota que tocaste!), desde
as mais graves até as mais agudas.
“– Como assim? Isso não acontece com os rés, com os fás, com
os sols? Com todas as notas?
“– Sim, mas cada uma a seu tempo.
“– De que forma?
“– Aparentemente, uma nota tem que encontrar aquele dedo que
a puxa, e as outras vibram a sua volta; mas as outras têm que acompanhar seu
movimento, mesmo sem saber a origem dele. E depois, não se sabe qual foi a que
vibrou primeiro; a tecla original vai minguando sua vibração; imagino que há um
momento em que também é esquecida aquela origem, porque todas vibram.
“– Mas há pouco falávamos que só se ouve o que se toca...
“– Eu não tinha pensado assim... não tinha pensado que uma
estava dentro da outra... pensava que estavam conectadas através da vibração,
das ondas, e que todas elas estavam dentro do piano; mas o produto dessa
vibração fica no ouvido, e alguns sons não se ouvem.
“– Se, na vibração, uma soa dentro da outra, o que acontece
quando a origem foi esquecida e todas estão vibrando dentro de todas?
“– Penso que aí alguma faz um esforço de limitação entre o
que é possível ouvir e o que não é, e fica para a nossa cogitação saber se a
gente vai aceitar essa imposição, essa limitação, ou se vamos considerar esses
sons, embora não os ouçamos. Aí a existência fica por parte do sujeito.
“– Mas será que esses sons, por não serem ouvidos, não
existem?
“– Isso, provavelmente, é o que nos liga ao primeiro homem e
à primeira mulher, porque talvez aquele que tenha tocado o teclado pela
primeira vez, aquele dó, não ouviu o mesmo som que nós; deixou perdido para
nós, como herança, aquilo que não suportou ou não conseguiu ouvir. E é nisso
que se mostrava tão surdo, tão humano, como também somos.
“– Essa imagem me lembra uma antiga música cuja letra dizia
assim: ‘Para onde vão as lágrimas, depois que foram derramadas; voltam aos
olhos de onde saíram, ou ao coração que as originou?’ Para onde vão as notas
que não são ouvidas, que se perdem diante de nossa incapacidade de
apreendê-las?
“– Isso nos remete à fala do replicante, do filme ‘Blade
Runner’[8], que está morrendo diante do caçador de androides, sob intensa
chuva, e diz assim: ‘Eu vi coisas que vocês, humanos, não compreenderiam...
naves de combate em chamas em Orion... Vi raios C brilharem na escuridão de
Tanhauser... Todos aqueles momentos ficarão perdidos no tempo... como...
lágrimas na chuva [diz chorando, e a chuva se misturando com as lágrimas]...
Hora de morrer.’
“– Estamos como a nota dó. Não sabemos como começou nossa
conversa. Quem tocou a tecla: tu ou eu? Assim como as vibrações, uma soa dentro
da outra. Será que isso não significa que, para sentir a diferença, a gente
precisa tocar ou ser tocado? Será que a gente não precisa de alguma forma de
entrar em contato?
“– Eu acho que sim! Como pensaste isso?
“– Penso que é insuportável estar o tempo todo se
desmanchando. Talvez o mito de Narciso seja ilustrativo: ao se olhar nas águas
paradas do lago, o belo rapaz se apaixona por sua imagem, esplendorosa; quer
abraçá-la: ao tocar a água, porém, esta se turva, desmanchando a maravilhosa
imagem e desesperando assim o amante de si mesmo. Não suportando a destruição,
Narciso se atira nas águas, procurando-se, perdido e, com isso, morrendo.
“– Então o Narciso era a imagem ou a pessoa?
“– Nem uma nem outra, e as duas ao mesmo tempo, fantasmas de
si mesmo no outro e do outro em si mesmo.
“– O perigo então é a morte? Não se quer enfrentar a
turbulência, a ruptura, pelo medo da morte?
“– Talvez o maior medo seja o da vida, de enfrentar o
desafio de viver. Viver é aceitar as pequenas e contínuas mortes... da certeza,
da possibilidade de saber-se pronto, de ter chegado ao fim e ter que desmanchar
e reconstruir, a todo o momento, num movimento quase incansável, a construção
da própria vida, tão difícil e sofrida.
“– E isso pode ser ensinado, como se ensina a tocar piano? É
possível ensinar a ouvir diferentes sons, matizes, tonalidades?
“– Talvez isso não se possa ensinar, mas se pode promover a
capacidade para querer ouvir, para querer ver, ampliando lentes e
flexibilizando posturas, permitindo descobrir que é através das pequenas mortes
que se criam as possibilidades de celebrar a vida.”
Esse metálogo pode ilustrar, de certa forma, alguns elementos
que estão na raiz da questão da diferença:
¬ a
constatação da existência do outro (ou outros) e o corte que isso provoca no
autoconhecimento e na auto estima;
¬ o tocar
e o ser tocado, como armadilhas da sensibilidade, permitindo escutar uma enorme
quantidade de sons, mas não necessariamente ouvi-los, captá-los, integrá-los no
“corpus” de conhecimento;
¬ o ver
sob diferentes lentes, absorvendo a riqueza e a diversidade do real, em suas
contradições e paradoxos;
¬ o abalo
narcisista que significa a ruptura da imagem idealizada, e a necessidade de
reformulá-la trazendo em seu bojo a vida e a morte, simbólicas formas de nascer
e de morrer;
¬ a
vibração, o entrar em contato, como a forma de se conectar a uma determinada
realidade, aproveitando-a integralmente: sua complexidade, polifonia,
multiplicidade.
O que está em jogo é a ruptura com o conceito estático de
homem, de mundo, de conhecimento; é a necessidade de cruzar experiências, de
compartilhar caminhos, de compreender a complexidade e a diversidade através da
abertura de canais para o diferente, o que não é meu, nem igual ao meu, mas por
isso mesmo merece respeito. E esse respeito descortina a possibilidade da
descoberta de coisas, pessoas, situações – insuspeitáveis, fascinantes. É certo
que esse caminho provoca ferimentos pela insegurança, pela quebra das certezas,
de normas estáveis. Mas quantas oportunidades se perdem de ampliar o
conhecimento pelo apego ao já sabido; quantas possibilidades de criação, de
imaginação não levantam voo pela censura prévia dos proibidos, dos não podes,
dos esperados, dos limites inscritos nas regras que tiveram origem em tempos
que já se perderam?
Um sistema que se recusa ao real, às modificações que são
provocadas por esse real, é um sistema que tende à petrificação, ao não arejamento.
De acordo com Morin[9],
“todo o sistema, inclusive o de ideias, tende, com o tempo,
a degradar-se, corromper-se, desintegrar-se. Contra essa entropia crescente,
ele pode lutar pelo calor, isto é, pela atividade permanente de auto revisão e
auto reorganização, através do intercâmbio com o mundo exterior e de diálogos
com os outros sistemas de ideias”.
Tão fundamental e complicada é a mentalidade, que é possível
encontrar, a todo momento, no espaço escolar, os embates e lutas pela
conservação e/ou ocupação de espaços, rituais e jogos de poder, continuamente
se entrechocando, através de regras, rituais, processos visíveis, em contínuo
movimento.
É ainda no espaço escolar que podemos visualizar as
múltiplas diferenças postas em cheque, ancoradas nos papéis instituídos,
disciplinarizadores, na demarcação de espaços de poder/saber, de regiões de
quem fala, nos instrumentos para produzir efeitos sobre corpos e mentes.
Nesse sistema vigilante e punitivo, algo que se observa é o
movimento da homogeneização, da estabilização, da constrição, da normatização,
do enquadramento. Desde a formação, ainda na família, depois continuando
através da escola e permeando todo o sistema social, a palavra de ordem é
conformação à norma, ao sistema; é obediência a determinadas regras.
Em estudo[10] recente, pudemos observar que são exigidos de
crianças de primeiras séries o silêncio, a obediência, o sentar-se quieto nas
classes, o responder ao solicitado (e quase não perguntar). A professora passa
boa parte do tempo pedindo silêncio e ordem, restando pouco para o trabalho com
atividade de ensino-aprendizagem.
Esse não é um problema puramente do professor ou da escola,
ou mesmo do sistema de educação. Talvez ele seja um problema que a afetar toda
uma concepção de homem e de mundo, onde o paradoxo está na exigência do
antinatural e no ensino do que não acontece. Por exemplo, se enfocamos a
formação de professores: onde se encontra, nos currículos e nos cursos, uma
preocupação com a diferença, com o movimento, com a desobediência, com a
criação, com a imaginação? A preocupação maior está em conteúdos e atitudes a ter
sob controle. Isso talvez ocorra porque seriam necessárias rupturas profundas
na concepção de ensinar e aprender.
Fazendo uma ponte com o início, penso que essas rupturas
precisariam acompanhar as que se fazem hoje em relação à questão sujeito-mundo,
ciência-natureza; mudanças precisariam se instalar nos canais de percepção, na
vibração das ondas, abrindo um leque de alternativas para o pensamento
criativo, disruptor, crítico.
Pensar a diferença é pensar em mudança, e ambas carecem de
algo que as suporte, que as conduza e mantenha no sentido de viabilização; esse
algo tem a ver com a flexibilidade, entendida por Bateson como “uma
potencialidade para mudança que não está sendo utilizada”.
Outro fator essencial é a liberdade, para permitir a
distribuição da flexibilidade e as aprendizagens decorrentes desse processo.
“Liberdade e flexibilidade com respeito às variáveis mais básicas, podem ser
necessárias durante o processo de aprender e criar um sistema novo mediante uma
mudança social”, diz Bateson[11].
A mudança no sistema social não se dá sem uma flexibilização
do sistema de ideias, que combate aquelas que se tornaram inflexíveis, movidas
pela repetição, pela generalização, que se tornaram hábitos de pensar e de
conceber o mundo, reiteradas pela frequência do uso, pela familiaridade,
rigidificadas pela aceitação social, sem a necessária inspeção crítica.
Se se considera a flexibilidade “como uma potencialidade que
não está sendo utilizada pela mudança”, é possível pensar que nosso sistema
social parece preferir controlar diretamente as variáveis expansivas contidas
no potencial de flexibilidade; talvez pudéssemos entender aí: por que a
diferença incomoda tanto? Se fôssemos capazes de fazer com que todos pudessem
usar mais sua liberdade e sua flexibilidade, permitindo um maior conhecimento e
utilização suas, talvez tivéssemos experiências excepcionais, como o
replicante... “ver naves de combate em chamas em Orion... raios C brilharem na
escuridão de Tanhauser”. Talvez nós compreendêssemos, então, outras linguagens,
outras vozes, que poderiam passar pelas experiências e que não se perderiam
como lágrimas na chuva.
Precisaríamos, certamente, reformular conceitos e incorporar
outros, e penso ser de extrema importância a concepção que Bateson[12]
desenvolve, depois de vinte anos de estudos sobre a mente, que pode ser assim
sintetizada:
“Quisera fazer um elenco de quais me parecem ser as
características essenciais mínimas de um sistema que eu possa aceitar como
características da mente:
“1) o sistema tem que operar com e sobre;
“2) o sistema tem que consistir em circuitos cerrados ou
redes de vias ao longo dos quais se transmitirão as diferenças e as
transformações das diferenças;
“3) muitos acontecimentos dentro do sistema têm que ser
energizados pelas partes respondentes e não pelo impacto da parte ativante;
“4) o sistema tem que possuir a capacidade de auto corrigir-se
na direção da homeostase e/ou na direção do escape do controle. A autocorreção
supõe o ensaio e o erro.”
Ao falar em reformular e incorporar conceitos, estamos
certamente falando sobre formação de subjetividade, que seria o último tópico
sobre o qual gostaria de discorrer. Acredito que até aqui foi possível observar
como todos esses aspectos estão interligados e, também, que a subjetividade
está se construindo, em todos e através de todos os mecanismos expostos até
aqui, em redes e atravessamentos que, por serem complexos, são tanto mais
difíceis de perceber e explicitar, porque se encontram ao mesmo tempo nos
discursos e nas práticas, nos costumes e nas leis, nas coisas ditas e não
ditas, nos processos visíveis e nos nem sempre tão transparentes.
Talvez fosse interessante desenvolver um pouco esse
tópico[13].
À educação cabe a tarefa de produção de “sujeitos” sociais:
criação e reprodução. Nada de novo. Querendo ou não, sabemos dessa sua dupla
direção. Podemos então perguntar: o que estamos produzindo? Que “sujeitos”
estamos construindo? Mas o que entendemos por produção? Que tipo de produção
queremos? Como se recolocam nossos papéis de educadores dentro desse momento
histórico?
Há menos de dois séculos nos descobrimos históricos.
Transcendemos nossos limites humanos através da experiência da vida coletiva.
Nem deuses, nem Deus, mas a sociedade em construção por suas próprias mãos.
Esta história não é linear, mas uma história com rupturas,
revoluções, descontinuidades. Há muito, pelo menos desde os gregos, o Ocidente
pensa a crise e anuncia o fim do mundo. É certo também que alguns momentos
históricos foram de euforia, de futuro promissor e ideal, e, em seu contrário,
depressões, descrenças generalizadas, niilismo.
Pensemos então a escola tal como a conhecemos hoje. Podemos
ver como foi construída e construiu-se numa rede de dispositivos de saber-poder
que envolvem toda a vida: dispositivos econômicos, biológicos, históricos,
epistemológicos. Foucault chama a isso de governabilidade ou biopoder.
A noção de governabilidade de Foucault introduz novas
perspectivas na análise do poder, enfocando especialmente as instituições e o
modo como estas conduzem indivíduos e grupos, ligados por diferentes relações
de poder, que “estruturam o campo possível de ação dos outros”.
No pensamento foucaultiano, a governabilidade dos outros é
produtora de subjetividade, no sentido de que dá forma à ação através da qual o
sujeito experimenta a si mesmo. Assim, como campo de possibilidades de ação, as
relações de poder nas instituições atuam no plano da indeterminação, da
construção dos possíveis. A racionalidade do governo está na escolha de ações
entre as várias disponíveis.
A produção de subjetividade se dá através da condição da
existência da liberdade, em que o antagonismo com a autoridade tem um papel
fundamental. A busca de interesses comuns, a construção de um espaço de criação
e de solidariedade, a articulação dos objetivos individuais com os objetivos
sociais, podem ser passos para a construção da democracia, fundada nos direitos
de cada um para com todos e de todos para com cada um.
Recoloca-se, então, o sujeito de conhecimento no mundo, em
seu novo lugar. É preciso humildade diante de seu reconhecimento da ignorância,
do não saber. É preciso flexibilidade diante das incertezas e das
multiplicidades de possibilidades do saber.
Para o homem, descobrir-se construtor do mundo e de si mesmo
torna-se quase insuportável, principalmente para aqueles que gostam da certeza
e da verdade. O que fizemos conosco mesmos? Do que somos construídos? Quais
foram nossas escolhas? Poderíamos colocar todas essas perguntas no “tempo
presente”; porém, como vamos entender “o que estamos fazendo e nos fazendo” sem
a compreensão da releitura crítica de nossa história, de nosso passado?
Não estamos na busca de justificativas que expliquem o que
nos aconteceu, nem de videntes que formulem nosso futuro, mas da compreensão
histórica que abraça várias esferas. Esta se dirige ao mais particular de nosso
cotidiano, nossas relações mais imediatas com as pessoas e as coisas, até a
história mais universal de uma civilização. Em cada gesto, um jeito, um modo de
ser impregnado das mais antigas tradições, bem como das mais recentes,
reciclado e reconstruído nos momentos de transformação social por qual tem
passado nossa civilização ocidental.
Instituinte e instituída, a escola é um lugar em que as
palavras e as ações se inscrevem, desde a desordem, em novas ordens, de saber,
de poder, de querer de gostar, de procurar, de sonhar, de sofrer. Práticas
divisórias se instalam, bem como paradoxos se colocam e multiplicam, e, no
lugar do sentido próprio da escola, que seria o de irradiar um processo de
ensino-aprendizagem, significados se esvaziam; e, na perda de parâmetros,
outros sentidos se recriam.
Lugar de se encontrar, lugar de ficar, lugar de ter contato,
lugar de fruição – para todos, alunos e professores –, o significado da escola
se constrói nesse estar junto, muitas vezes mais do que para ensinar e
aprender, mais do que para ter e exercer uma função, de trabalhar e estudar.
Esse lugar de troca, de convívio, é estruturante e, frequentemente, assume o
lugar de todo o sentido.
Tão importante esse papel social da escola! Centro gerador
de relações de poder e de produção de subjetividade! Será que sabemos a
profusão de conhecimentos que existem dentro da escola? Ou será que os
discursos de fora, “autorizados”, os calam, não os deixam aparecer, dissolvidos
e pulverizados num exercício massacrante de um agir ininterrupto, mecanizado,
burocratizado?
Será que se conhece, “se ouve” o cotidiano da escola em seus
murmúrios, lamentos ou possibilidades de realização, encontro e criação? Será
que se conhece a trama de enredamentos que perpassa a escola? Será que se
atenta para o sofrimento que existe dentro dela?
Fala-se muito que na escola não se encontra o prazer, que a
vida está fora da sala de aula; por todos os lados, o tédio, a rotina, o
faz-de-conta que aprende e o faz-de-conta que ensina, o sistema múltiplo das
cobranças, das avaliações, reprovações, suspensões, expulsões, exclusões
infinitas. Fala-se pouco do sofrimento, da angústia, da culpa, da
auto-recriminação, da vontade de saber, do medo de errar, da sensação de
impotência, da tortura do tempo, dos prazos que sufocam e se esgotam, matando
possibilidades de trabalhar com qualidade. Fala-se pouco do sentimento de
desqualificação, ligado ao desprestígio da função do professor em nossa
sociedade, ao sentimento da indignidade pelos baixos salários e baixo
reconhecimento social, à pouca importância dada à educação, de forma efetiva.
Fala-se pouco do verdadeiro heroísmo que mantém um grande
contingente de pessoas trabalhando com a educação, gostando do que faz, apesar
de tudo, entusiasmado pela experiência bonita, gratificante, que é observar os
resultados de seu trabalho no sorriso iluminado de alguém que aprende.
Talvez um dos grandes problemas a ser pensado, da separação,
do esquartejamento entre ciência e prática, entre razão e coração, entre
pensamento e sentimento, divorciando a alma do corpo e a razão do coração.
Citando Galeano[14]:
“Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam
perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não
se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços. O sistema divorcia a
emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida
pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao
presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, no
guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces. O sistema esvazia
nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a
história ao invés de fazê-la. As tragédias se repetem como tragédias.”
E as tragédias se repetem nas filas, cabeças atrás de
cabeças. Caderno, lápis, borracha, caneta. Silêncio, exercício, prova, cabeça
baixa, olhos baixos; psss... Disciplinarização do cotidiano, rotina enfileirada
do tédio, escola com saber sem sabor e não podendo saber: do movimento, da
alegria, do riso, da busca, do diferente. Porta fechada. Professora repreensão;
psss... ouvidos de escuta. Professoras, conversa de participação, de
integração. Tragédias da estaticidade, da imobilidade, do silêncio, do obrigar
a calar, da imposição da fala, da prova, da avaliação; do prazo, da norma, da
lei, de obrigação. Psss... a direção... secretaria... o sistema... grande
determinação. Educação robótica. Onde o espaço para pensar? Pois pensar é
preciso! Onde o espaço para olhar e inventar? Pois é preciso olhar e inventar
para mudar! Onde o espaço para criticar? Pois é preciso expressar o pensamento
verdadeiro, escondido, profundo, a crítica, para a ventilação do sistema.
Psss... silêncio, não pode falar, não pode gritar, não pode chorar... como pode
viver? Precisa trabalhar, precisa ganhar, precisa comer, precisa vestir, criar
filho, pagar aluguel e as contas do fim do mês... quem pode desafiar? Tantos
“não pode”, asfixias... tantos medos... punições; o melhor é calar, sufocar,
conter, fingir que não vê, fingir que não sente, fingir que não se importa...
mas como esconder, aprisionar, a ânsia explosiva, rebelde, de estar vivo?... o
coração batendo de raiva, de indignação, de admiração, de surpresa? Como fazer
parar o coração? Como apagar a vontade? Como driblar o desejo? Forças vivas que
habitam os corações de homens e mulheres, desafiam o tempo e a tragédia, todas
as injustiças e adversidades, mas iluminam a própria vida. Como disse
Galeano[15]:
“Somos um mar de fogueirinhas (...) Cada pessoa brilha com
luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem
fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe
gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche
o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros
incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem
pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.”
Sabemos como lidar com essas diferenças de fogos, de
temperaturas, de intensidades? Sabemos como aproveitar o calor – da dúvida, da
curiosidade que queima, que quer saber? Sabemos como lidar com a força do
movimento – que não deixa parar, que se ondula, corre, dança e, se movendo,
agita e, se agitando, perturba o monótono fluir do quadro, da moldura, do certinho,
do parado, do imóvel, do sem vida? Conhecemos nosso próprio fogo? Ou
imediatamente o apagamos ao menor sinal de fumaça? O quanto somos vencidos pelo
medo, grande aprisionador, grande dispositivo de poder sobre nós, submetidos a
infinitos e múltiplos controles dentro da vida social?
Quem sabe não deveríamos exercitar velhas artes da infância,
como a teima... teimar em determinado objetivo, perseguir perseverantemente um
determinado propósito, apostar corajosamente no que se acredita e, com isso,
conseguir fazer pequenos deslocamentos, ou seja, ir onde ninguém está
esperando, penetrar em lugares desconhecidos, surpreender e surpreender-se; e
também jogar, brincando espontaneamente, ludicamente, prazerosamente, com essas
novas transformações... possíveis, concretas, imediatas. Talvez haja condições
para que adulto e criança tenham mais coisas em comum do que se supõe
normalmente e que esses mundos possam se entrelaçar como anéis recorrentes que
devolvam, pelo menos, um pouco a alegria ao mundo tão sombrio em que vivemos,
fortalecendo assim os discursos de “dentro”, construídos na força viva da
experiência, através do riso, das lágrimas, dos conflitos, do prazer, do
sofrimento, da curiosidade, do desafio, capazes de gerar novas verdades.
Mas como lidar com o querer não querendo e o não querendo,
querer? Como lidar com as contradições que envolvem e criam a própria escola,
centro de contradições dentro de um todo maior que é a sociedade?
Sabemos que não é fácil “ser diferente” no interior das
instituições que desejam o amoldamento a uma massa relativamente uniforme,
idêntica e identificada, unificada, monocórdica, quase anônima – o que, antes
de tudo, é completamente paradoxal com a força do movimento, da contradição, da
oposição, da rebeldia, da ânsia pelo novo que constitui a própria vida. Esse
conflito entre a tendência homogeneizadora institucional e a rebeldia dos
sujeitos traduz um dos mais inquietantes problemas que a escola, como segmento
da sociedade, precisa enfrentar em sua base, em sua raiz, pois constitui um
caldo fervente de relações que, inevitavelmente, provocam as dissociações entre
discursos e práticas.
Trabalhar com o “diferente” é estar também neste “não
lugar”, movediço, incerto, refazendo-se e reconstruindo-se a todo o momento,
utilizando o desafio da dificuldade como motor para a construção de novos
sentidos e realidades desse ensino que é tão “especial”.
Essa pode ser a aventura da diferença!
Referências bibliográficas
BATESON, G. Pasos hacia uma ecologia de la mente : una
aproximación revolucionaria a la autocomprensión del hombre. Buenos Aires:
Planeta/Carlos Lohlé, 1991.
EIZIRIK, M.; COMERLATO, D. A escola (in)visível: jogos de
poder/saber/verdade. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1995.
FOUCAULT, M. La folie n’existe que dans une societé. In: DÉFERT, D.; EWALD, F. Dits et
écrits : 1954-1988 – par Michel Foucault. Paris: Gallimard, 1994.
__________. Vigiar e punir : história da violência nas
prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
GALEANO, E. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM,
1991.
MORIN, E. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
[1] Publicado em
EIZIRIK, Marisa F. Educação e Escola: A Aventura Institucional. Porto
Alegre, AGE, 2001, cap. 3: 37-57.
[2] Psicóloga, Professora do Pós-Graduação em Psicologia
Social e Institucional/UFGRS, Coordenadora do Empiria - Assessoria, Pesquisa e
Ciclos de Estudos em Educação. ( Este endereço de e-mail está protegido contra
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[3] FOUCAULT, M. La folie n’existe que dans
une societé. In: DÉFERT, D.; EWALD, F. Dits et écrits : 1954-1988 – par Michel
Foucault. Paris: Gallimard, 1994. p.169.
[4] FOUCAULT, M.
Vigiar e punir : história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
[5] EIZIRIK, M.;
COMERLATO, D. A escola (in)visível : jogos de poder/saber/verdade. Porto
Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1995. p.97.
[6] BATESON, G.
Pasos hacia uma ecologia de la mente : una aproximación revolucionaria a la
autocomprensión del hombre. Buenos Aires: Planeta/Carlos
Lohlé, 1991. p.27.
[7] EIZIRIK, M.;
MENDES, M. R. Notas para um trabalho sobre diversidade/diferença. Porto Alegre,
novembro de 1992. Trabalho não publicado.
[8] Filme que, no
Brasil, dirigido por Ridley Scott, se chamou “O Caçador de Andróides”.
[9] MORIN, E. Para
sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.92.
[10] EIZIRIK, M.;
COMERLATO, D. A escola (in)visível : jogos de poder/saber/verdade. Porto
Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1995.
[11] BATESON, G.
Pasos hacia uma ecologia de la mente : una aproximación revolucionaria a la
autocomprensión del hombre. Buenos Aires: Planeta/Carlos
Lohlé, 1991. p.530.
[12] BATESON, G.
Pasos hacia uma ecologia de la mente : una aproximación revolucionaria a la
autocomprensión del hombre. Buenos Aires: Planeta/Carlos
Lohlé, 1991. p.515.
[13] Alguns trechos
a seguir foram extraídos, com algumas modificações, de EIZIRIK, M.; COMERLATO,
D. Os ingredientes da complexidade : jogos de poder e de verdade nas práticas
sociais e discursivas sobre a escola. In: EIZIRIK, M.; COMERLATO, D. A escola
(in)visível : jogos de poder/saber/verdade. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1995. p.111-122.
[14] GALEANO, E. O
livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 1991. p.121.
[15] GALEANO, E. O
livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 1991. p.13.
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