A Perda da Visão na Adolescência e na Idade Adulta.
Ana Maria Medeiros.
A pessoa que perde a visão quando
jovem ou adulta, se, por um lado, "já viu o que havia para ver no
mundo", como diz o povo, por outro, tem de defrontar-se com o trauma
psicológico da perda. Pelos casos que conhecemos, o processo de superação
depende muito da atitude pessoal, da situação sócio econômica, cultural e
familiar, mas aconselha-se que essas pessoas sejam alvo de acompanhamento
psicológico, bem como as suas famílias.
É natural que a pessoa sinta que o
seu mundo ruiu ao cegar. As bases em que ele se sustentava deixarão de existir.
Realizar tarefas quotidianas em casa, andar na rua, dirigir-se para a escola ou
emprego, entre outras, deixará de ser possível antes de se ter iniciado
um processo de reabilitação.
As famílias, que tantas vezes se
sentem indefesas perante a adversidade, respondem de forma desajustada,
compreensivelmente. As duas respostas familiares mais comuns são o abandono ou
a super proteção. A ajuda deverá vir tanto dos serviços de saúde, como da
escola, no caso de crianças e jovens, implementando programas sempre no sentido
de considerar que o indivíduo é um todo e que a sua reeducação objetivamente
procurará que os seus níveis de participação na vida familiar e social sejam,
quanto possível, repostos.
Os profissionais de saúde e os
professores não devem esquecer que as perdas que a cegueira traz são muitas. Segundo Carrol (1968), podem ser sistematizadas
da seguinte forma: perdas emocionais, perdas das competências básicas, perdas
na consideração pessoal, perdas relacionadas à ocupação profissional, perdas na
comunicação e perdas que implicam a personalidade como um todo.
As perdas emocionais caracterizam-se
pela fragmentação da auto imagem e perda da auto estima . O indivíduo, que
tinha a sua vida centrada no sentido da visão, deixa de poder sentir-se como uma pessoa completa,
considerando-se, pela diferença física, alguém inferior, alguém que não é o que
era e que surge diferente dos outros que o rodeiam. O peso do que lhe sucedeu
assume tais proporções que pode ficar psicologicamente instável. Tarefas
simples do quotidiano, como olhar-se ao espelho, escolher uma peça de roupa ou
cumprimentar um amigo à distância, tornam-se impossíveis e geram situações de
afastamento, de necessidade de ajuda e de angústia.
Se cada um tem uma auto imagem,
independentemente de ser real ou não, ao cegar o indivíduo a perde. Sente que é
outra pessoa e que dificilmente voltará a ser alguém que
interesse aos outros.
A sua relação com os outros e com a
cegueira dependerá também da forma como via os cegos enquanto conservava a sua
visão. Se a sua percepção dos cegos valorizava fatores como a mendicidade, a
pobreza e a dependência, naturalmente que não acreditará com a mesma convicção
na sua reabilitação. Se, por outro lado, associava cegos a artistas, a pessoas
que enfrentavam a vida corajosamente, a sua posição face ao futuro, ao cegar,
não será desesperada.
A pessoa que cega repentinamente
perde as competências básicas. Não se saberá vestir, não será capaz de se
alimentar, de se locomover, de se desviar de obstáculos, de se apresentar de
forma socialmente aceitável... Terá imensas dificuldades em orientar-se, em
fazer opções em termos espaciais, como escolher pontos de referência. A
cegueira repentina como que imobiliza o indivíduo que a experimenta. Sentidos
como o olfato e paladar, antes tão negligenciados, tornam-se lentamente
muitíssimo importantes, o mesmo sucedendo com a audição e com o tato. Enquanto
o sentido da visão não for substituído pelos outros, o cego sente-se como que
perdido no mundo e sujeito a um constante sentimento de pânico, temendo sempre
pela sua segurança, seja no meio familiar ou no espaço exterior.
A não realização de competências
básicas, por um lado, levam-no a considerar-se como alguém agora incapaz de ser
reconhecido pelo que fazia quando via; por outro, tornou-se alguém
completamente dependente de familiares ou de amigos, o que veio romper antigos
equilíbrios que norteavam a sua vida.
Incapaz de realizar as tarefas comuns
do dia-a-dia, tornando-se dependente, o cego perde a sua liberdade, a sua
intimidade, a sua posição no seio familiar e muito daquilo que o unia aos
outros. O mesmo se pode dizer que sucede com as competências relacionadas com a
ocupação profissional. Não podendo trabalhar, de repente vê-se sem mais um
traço da sua identidade, que é a sua profissão. Perde também os colegas de
trabalho, as vivências que uma profissão traz ao dia-a-dia de quem trabalha, a
interrupção de uma carreira, a degradação da sua situação econômica e a
esperança em relação ao futuro... Se ainda é estudante, o seu desempenho
acadêmico fica em risco e muitas vezes o abandono da escola ou universidade é a
resposta ao que sente.
As perdas relacionadas com a
comunicação são relevantíssimas. A perda de visão impedirá a leitura, antes tão
natural, bem como a observação de obras
de arte, a assistência de espetáculos, seja presencialmente seja através da
televisão. Se se trata de alguém que gostava de ler, de ver exposições de
pintura e de assistir a espetáculos de cinema ou teatro, sentirá que a sua
perda é enorme.
Faltar-lhe-á um conjunto de pontos de
identificação com o mundo, pontos que antes encontrava em livros, jornais, em
publicações relacionadas com a sua área profissional... Além disso, não podendo
consultar os seus extratos bancários, ler as faturas da água, eletricidade e
telefone..., verifica que a sua vida privada é vasculhada por terceiros, o que
lhe causará angústia.
Apesar de existirem respostas de tipo
tecnológico para muitos dos problemas aqui apresentados, não podemos esquecer
que a cegueira afeta o indivíduo como um todo e que a resposta a esta situação
varia com os indivíduos. Há os que reagem e superam, reorganizando a sua vida,
mas há muitos outros que se vitimizam, assumindo-se como
"coitadinhos", como merecedores de pena, nada preocupados em crescer
como pessoas.
Por considerarmos que a cegueira
repentina afeta a vida completa de uma pessoa, concordamos com Bruno e Mota
(2001, p. 144) quando escrevem que: "...é ingênuo considerar que a
cegueira é uma deficiência que atinge somente a visão. Ela pode abalar
seriamente a estrutura psíquica de quem venha a adquiri-la".
Conhecedoras dos contornos do
problema da perda de visão, as pessoas que rodeiam o cego recente devem reagir
o mais naturalmente possível. Não faltar com a ajuda quando necessária, mas
evitar a comiseração e a piedade que melindram quem é alvo delas.
Não é, contudo, possível esquecer as
vicissitudes da nova condição. As pessoas devem compreender que aquele que
cegou se torna uma pessoa diferente e que perdeu a sua privacidade. É agora
alguém marcado, alguém que perdeu o seu antigo anonimato. Por isso, pede-se a
quem o rodeia que nem o subestime, nem o valorize sem razão.
Muitos cegos recentes, ao verem que
ganham notoriedade, tentam dar o passo para a frente sem resolver os problemas
básicos da vida. Tornam-se extremamente dependentes, embora pareçam apresentar
uma autonomia e uma participação social merecedoras de louvor. Ao contrário
desta pessoa, é comum também surgir o cego recente que, como perdeu o sentido
que o ligava ao mundo, como não pode apreciar a natureza, o que é belo,
isola-se e corta os laços com o meio exterior.
Os técnicos de reabilitação devem
estar atentos a estas situações e perceber o que está em jogo para buscarem o
equilíbrio, trabalhando em conjunto com a família e, se possível, com a
comunidade.
O mesmo se espera da escola.
Pede-se-lhe que não permita que haja rupturas na vida acadêmica dos alunos que
cegaram recentemente. Como na maior parte dos casos a cegueira não é repentina,
antes a perda da visão é lenta e gradual, a prevenção deve ser uma prioridade
para professores e outros técnicos.
Por outro lado, é preciso determinar
quando deverá ter início a aprendizagem do sistema Braille. Como escreve
Correia (2008), "...a transição para o sistema Braille deverá fazer-se sem
saltos, não sendo necessário interromper os estudos. Hoje estão disponíveis um
conjunto de meios tecnológicos que configuram alternativas válidas para que os
alunos consigam dominar o Braille gradualmente e de forma tão cômoda quanto
possível, até o tornarem no seu meio natural de escrita e leitura."
Muito dificilmente uma pessoa
normovisual compreende e consegue experienciar o que é ser cego. É ilusão
julgar que fechar os olhos, realizar tarefas na escuridão ou deixar-se guiar
por outrem, resumem o que é ser cego (Martins, 2006). Para este autor, a
dificuldade de um normovisual perceber o que é ser cego e, consequentemente a
sua integração na sociedade, está ligada aos preconceitos profundamente
arraigados na nossa cultura. Podemos encontrá-los na Bíblia e na mitologia,
através da figura de Tirésias.
Por um lado, ser cego, como são os
cegos que surgem nas nossas aldeias, vilas e cidades, não é apenas não ver.
Trata-se de pessoas que adquiriram um conjunto de competências que lhes permite
enfrentar o quotidiano em segurança, com comodidade e de forma profícua. Por
outro, a pessoa cega não é apenas a sua cegueira, mas alguém que tem uma vida
como qualquer outro ser humano.
Para a pessoa de visão normal é quase
impossível imaginar-se sem o seu sentido primordial, colocar-se na posição do
cego que se cruza consigo na rua, compreender determinadas atitudes que o vê
tomar. Muitas vezes o que é natural para um cego não o é para um normovisual.
Quantas vezes é um cego agarrado por diversas mãos ao descer de um comboio, mas
logo abandonado na plataforma da estação? Que dizer deste comportamento se
considerarmos que ele precisaria, em vez da ajuda para descer da carruagem, da
informação da localização das escadas mais próximas para se poder dirigir para
a saída? Este exemplo de incompreensão é bem claro e percebe-se que pode
conduzir a pequenos desentendimentos. Naturalmente será mal visto o cego que
recuse uma ajuda para descer do comboio, considerada necessária pelos que o
rodeiam. Muitos casos de agressividade por parte as pessoas com deficiência
resulta de situações como a que descrevemos.
Os cegos ainda hoje são considerados
seres exóticos por muitos que com eles se cruzam. A sua cegueira avulta como
característica primordial. Os cegos são olhados como uma comunidade, como um
todo e não como pessoas isoladas e quantas vezes sem relação alguma com outros
cegos que vivem na mesma rua ou bairro.
Os cegos, na opinião popular, são
todos inteligentes e lindos (Correia, 1995). O anedotário pinta-nos um cego,
umas vezes, ladino, bizarro e malvado, mas, outras, infeliz e humilhado. As
artes dão também um contributo para esta visão estereotipada do cego. A
literatura e o cinema estão cheios de exemplos em que cegos são descritos de
uma forma difícil de aceitar por um espírito esclarecido. Prova disso é o que
sucede em O Rosário (Barclay, 1970), em que o protagonista perde a visão e a
sua enfermeira coloca cordas para ligar o piano à poltrona para que ele se
possa deslocar com comodidade. Outro exemplo caricato aparece em O Milagre
(Wallace, 1984), em que a personagem cega conta os passos para se deslocar quer
em casa quer na rua. Também esta personagem sofreu a perda da visão e acredita
poder ser curada por um milagre de Nossa Senhora de Lurdes.
Há a tendência para julgar que os
deficientes visuais apresentam as mesmas características pessoais. Refletindo
sobre o assunto, Delgado Cobo, Gutierrez Rodriguez e Toro Bueno (2003, p. 119)
escrevem que: "Podemos afirmar que não encontramos elementos que nos
permitam falar na existência de uma personalidade do cego", acrescentando
que, embora se possam observar alguns traços e tendências, muitos cegos não
possuem a maior parte deles.
Bibliografia.
Ana Maria Medeiros - Instituto de S.
Manuel - Porto.
·
BARCLAY, Florence, O Rosário, Lisboa,
Editorial Minerva, 1970.
·
BRUNO, Marilda Moraes Garcia e MOTA,
Maria Glória Batista da, Deficiência Visual, Série Atualidades Pedagógicas,
Brasília, Ministério da Educação/Secretaria de Educação Especial, 2001.
·
CARROL, Thomas G., Cegueira: O Que
Ela É, O Que Ela Faz e Como Viver Com Ela, S. Paulo, Ministério da Educação e
Cultura, 1968.
·
CORREIA, Fernando Jorge A., "Os
Cegos Perante a Opinião Pública", Actas do 1º Congresso da Associação dos
Cegos e Amblíopes de Portugal, Lisboa, Associação dos Cegos e Amblíopes de
Portugal, 1995.
·
CORREIA, Fernando Jorge A., "O
Futuro do Jovem Cego de Hoje", Conferência Proferida no 1º Congresso
Ibérico de Educação Especial: Percursos e Percalços, Santa Casa da Misericórdia
do Porto/ Universidade Lusíada, Dezembro, 2008
·
DELGADO COBO, A; GUTIERREZ RODRÍGUEZ,
M. e TORO BUENO, S., "Personalidade e Auto-imagem do Cego", Manuel
Bueno Martín e Salvador Toro Bueno (coords.), DEFICIÊNCIA VISUAL - Aspectos
Psicoevolutivos e Educativos, Santos, Livraria Editora, 2003, pp. 117-128.
·
MARTINS, Bruno Sena, "E Se Eu
Fosse Cego?": Narrativas Silenciadas da Deficiência, Porto, Edições
Afrontamento, 2006.
·
WALLACE, Irving, O Milagre, Lisboa,
Livros do Brasil, 1984.
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